Uma obra referência no estudo do processo político-militar a partir da deposição do presidente João Goulart.
Publicado em 1995, O Palácio e a Caserna: A dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969) – 2ª edição propôs pela primeira vez que o panorama militar depois do golpe de 1964 foi mais complexo do que propunha a literatura sobre o tema. Ao invés de aceitar a presença apenas de duas correntes – os castelistas ou moderados e os radicais da chamada linha dura – encontrou pelo menos quatro “partidos” castrenses que se dividiram em torno de dois eixos: as sucessões presidenciais e os conflitos entre o governo e os quartéis. Tanto em sua estrutura como em sua dinâmica, o regime do pós-1964 é definido como uma ditadura militar. Sua atualidade permanece num momento em que as Forças Armadas voltaram a ocupar papel chave na política brasileira.
Agora o livro ganha a versão e-book, disponível para compra em todas as plataformas digitais. A versão física encontra-se disponível para compra no site da Editora Alameda.
Confira abaixo a nota à segunda edição de João Roberto Martins Filho.
Nota à segunda edição
Vinte e quatro anos após sua primeira aparição (EDUFScar, 1995), vem à luz a segunda edição de O palácio e a caserna, originalmente minha Tese de Doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (1993), sob a orientação de Décio Saes.
Publicado apenas uma década depois do fim da ditadura, o livro colocava-se frontalmente contra as teses então dominantes, que definiam a dinâmica política ditatorial a partir do conflito entre uma corrente militar moderada ou liberal (os chamados “castelistas”, em referência a Castelo Branco, primeiro general-presidente, 1964-1967) e uma “linha dura” (nacionalistas propensos a pressionar o governo pelo aprofundamento da “Revolução” de 1964). A novidade dessa abordagem parece ter dificultado, de início, sua aceitação entre os estudiosos do período.
Em sua primeira década de existência, com duas tiragens de apenas 300 exemplares, a lenta e gradual aceitação do livro deveu-se principalmente à generosidade de um grupo de pesquisadores do período militar, que o inseriram entre as leitura obrigatórias de suas disciplinas, referiram-se a ele em balanços historiográficos ou o analisaram em resenhas publicadas no calor da hora. Mas a curva de citações no Google Scholar não deixa dúvidas: somente depois de 2005, ele passou a ser citado em dissertações, teses, artigos e livros da jovem geração dedicada ao estudo do regime militar, no Brasil e no exterior.
Enquanto isso, graças aos pesquisadores do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, apenas dois anos depois da publicação do livro, vinha à luz o depoimento do general Ernesto Geisel, o quarto presidente militar (1976-1979). Nele, esse oficial “castelista” lançava luz sobre os bastidores do regime, parecendo confirmar a tese de que a dicotomia acima não dava conta da complexidade do quadro militar na primeira década de ditadura, nem fora capaz de captar o caráter “duro” de certas ações castelistas. O mesmo se pode dizer dos dois primeiros volumes da história da ditadura militar de autoria do jornalista Elio Gaspari, que vieram à luz em 2004. Com acesso a documentação pessoal e inédita de Geisel e seus principais assessores, com destaque para o general Golberi do Couto e Silva, esse autor falava em “anarquia” militar para descrever os processos de conflito interno à ditadura.
Alguns anos mais tarde, num campo ideológico oposto, firmava-se uma nova tendência historiográfica, crítica de toda a literatura anterior sobre o período militar, que acusava de ignorar o decisivo papel dos “civis” durante a ditadura. A proposta de denominação do regime como “civil-militar” teve imediata e ampla aceitação. Nesse quadro, com sua ênfase no caráter militar da ditadura, as teses de O palácio e a caserna pareciam destinadas ao esquecimento, agora não mais por serem heterodoxas, mas pelo motivo contrário: sua ortodoxia. Embora reconhecendo a riqueza e potencialidade da nova abordagem, que abria ampla agenda de pesquisa sobre o regime de 1964-68, logo nos colocamos numa posição crítica a ela, com base justamente nas teses centrais do livro ora republicado.
No momento em que vivemos, marcado por profunda crise política e pela eleição em fins de 2018 do candidato de extrema-direita à Presidência da República, notório defensor do regime militar e de suas práticas mais desumanas, o qual logo convocou dezenas de colegas de farda para ocupar cargos chave no novo governo, uma nova mudança na historiografia parece despontar. Sem perder os avanços conquistados pela ênfase no apoio civil ao regime do pós-64, volta-se a falar de ditadura militar
Em 2016, ao completar vinte e um anos, o livro atingiu sua maioridade formal, ainda com saúde, mas transformado em raridade, impossível de ser encontrado mesmo na era dos sebos virtuais. Três anos depois, esta nova edição vem à luz sem maiores modificações. Mudamos apenas aspectos formais, que ainda lembravam a redação típica de teses acadêmicas, ou fizemos pequenos acréscimos, para explicar, entre parênteses, personagens e acontecimentos que, em 1995, ainda estavam frescos na memória do leitor e hoje estão meio apagados pela bruma do tempo.
Para o autor, passado um quarto de século, republicar o livro funciona como um elixir da juventude, fazendo renascer a excitação e a insegurança de uma primeira edição. O Brasil mudou desde 1995, sem acertar suas contas com o passado ditatorial ou construir uma memória histórica sólida capaz de rejeitar qualquer nostalgia autoritária. A longa crise política do pós-2013, com seu desfecho conservador, recoloca na ordem do dia nossa obrigação de estudar e entender esse período triste de nossa história. Mais do que nunca, no país atual, o conhecimento crítico e objetivo sobre aquele trágico período de nossa história parece não só necessário, mas vital.
Sobre o autor: João Roberto Martins Filho é Professor titular sênior de Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos. Autor de Movimento estudantil e ditadura militar, 1964-1968 e Segredos de Estado: o governo britânico e a tortura no Brasil, 1968-1976. Ocupou cátedras brasileiras nas universidades de Londres e Leiden.