Esboço biográfico
Negroluminosa voz a de Maria d’Apparecida (1926-2017), que arrebatou os palcos mais disputados da música lírica europeia antes de alcançar o do Rio de Janeiro. Em 1965, quando Maria Callas não pôde cantar Carmen, a mezzo-soprano negra brasileira a substituiu. Só integrando, como estrela, uma companhia de prestígio europeia foi chamada a cantar no Theatro Municipal.
Nem por isso deixou de enfrentar o racismo, expresso agora não como veto, mas com pequenos gestos de um cotidiano cruel, como a recusa em massageá-la ou em aplicarem-lhe uma medicação.
Por quase uma década após esse momento de glória, D’Apparecida circulou nos meios mundiais do canto com grande destaque. Um acidente interrompeu sua carreira lírica e a colocou na posição de cantora de Música Popular Brasileira e autora de um disco com Baden Powell. Foi quando mais vendeu LPs.
Maria d’Apparecida foi também a musa de um grande pintor, o surrealista Félix Labisse, com quem manteve um longo relacionamento amoroso. Era amiga da esposa de Labisse, que se lembrou dela no testamento. Se tudo correr bem, estarão um dia os três na mesma tumba.
Filha de uma empregada doméstica engravidada pelo patrão, Maria d’Apparecida nos faz lembrar das crueldades de classe e de raça sobre as quais se assenta a sociedade brasileira. Suas conquistas se deram superando essa injustiça estrutural, e lembrá-las é uma forma ao mesmo tempo de reconhecer seu talento gigantesco e de denunciar nossas raízes mais venenosas.
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Sobre a autora: Mazé Torquato Chotil é jornalista, pesquisadora e doutora em Ciência da Informação e da Comunicação pela Universidade de Paris VIII. É autora de José Ibrahim: o líder da primeira grande greve que afrontou a ditadura (Alameda, 2018).