"O cangaço que eu só conheci em São Paulo me deu também uma abertura muito grande para uma análise mais profunda de todos os movimentos que ocorreram entre 1885 e 1938, porque eles se entrelaçam na luta por mudanças"
Leia abaixo trecho inédito do livro Coisas Que Eu Vi, do jornalista Humberto Mesquita, a ser lançado pela Alameda Casa Editorial.
A rigor, enquanto morei no meu Nordeste, não me interessei muito pelo cangaço. Ouvi falar do movimento como um fato ocorrido naquelas bandas. Lembro-me de uma história, que me foi contada por meu pai, sobre um tal de Antônio Silvino, que antes de se tornar cangaceiro famoso namorou a empregada do meu avô. Essa história chegou a meu conhecimento muito tempo depois que o cangaceiro ganhou fama nos sertões nordestinos. Ele teve uma passagem por Campina Grande, cidade onde nasci e dei meus primeiros passos, antes de ir viver em João Pessoa. Mal eu sabia, que, quando chegasse em São Paulo, depois de fazer estágio no jornalismo do Rio de Janeiro, iria me tornar um autêntico caçador de ex-cangaceiros. Caçador no bom sentido, é claro, porque os verdadeiros caçadores eram os soldados da volante que durante 18 anos perseguiram esses “fora-da-lei”, notadamente Lampião, até cercá-los e matar onze no famoso cerco de Angico, comandado pelo tenente Bezerra.
O cangaço caiu nas minhas mãos ou passou a ser foco do meu interesse por influência de uma historiadora que conheci, de nome Cristina Matta Machado, que participou de um programa que produzia na TV Bandeirantes, onde ela falou com maior entusiasmo sobre esse movimento, criando em mim a vontade de pesquisar o tema e, mais do que isso, fazer matérias jornalísticas para a revista Realidade e também para a TV Gazeta, TV Bandeirantes e TV Tupi. Nessa última cheguei a colocar no programa “Almoço com as estrelas” do saudoso Airton Rodrigues oito ex-cabras de Lampião: Labareda e Dadá que vieram da Bahia, Zé Sereno, Sila, Balão, Marinheiro, Pitombeira e Criança, de São Paulo.
Difícil imaginar a dificuldade que tive para encontrar esses de São Paulo, porque, apesar de terem sido anistiados por Getúlio Vargas, em 1940, durante o Estado Novo, eles viviam escondidos, amoitados como se tivessem na metrópole paulistana a mesma situação que viveram nos sertões do Nordeste. O mais tranquilo foi Zé Sereno, que não propagava sobre seu passado e era vigia numa escola de crianças na zona norte da capital paulista. Todos esses conseguiram escapar do cerco de Angicos, onde morreram Lampião, Maria Bonita e mais 11 cangaceiros assassinados pela volante comandada pelo Tenente Bezerra. Morreu também o soldado Adrião Pedro de Souza, baleado pelos cangaceiros, isso em 28 de julho de 1938.
Os primeiros que eu encontrei foi o casal Sila e Zé Sereno que morava no Ipiranga, e que tinha um filho de nome Wilson, que trabalhava na USP. Eles viviam encolhidos, sempre preocupados com a presença da polícia.
Foi a partir desses dois, com a ajuda do filho Wilson que comecei a desenrolar o barbante para encontrar primeiramente Marinheiro, que era irmão de Sila, Balão, que morava em Itaquaquecetuba, se dizia poeta do cangaço e recitava até esses dias o verso que ele criou na época da guerra. –“Meu bacamarte se chama José Frederico, alegria de pobre, miséria de rico, onde ele põe a mão, urubu põe o bico”. Era muito brincalhão e cheio de humor. Pitombeira, que se escondia na Mooca se dizia ex-cangaceiro, mas até mesmo aqueles se agruparam nas nossas pesquisas, desconfiavam um pouco dele acreditando que ele fora um coiteiro e nunca um cangaceiro. O certo é que ele conhecia pormenores do cangaço, mas isso não teria sido difícil para quem viveu a época e conviveu de certa forma com o cangaço.
Cheguei a Dadá, viúva de Corisco, que era figura já conhecida do povo baiano, e Labareda, que também morava na capital baiana. Mais difícil foi o de Criança, cujo nome verdadeiro era Antônio, mas que, quando chegou a São Paulo, mudou de nome, e passou a se chamar Vitor Rodrigues, temendo represálias da polícia por conta do seu passado. No cangaço, ele foi marido de Dulce, com quem se casou na cadeia de Jeremoabo, cidade onde eles haviam se entregado para ganhar a anistia dada por Getúlio. A anistia só era concedida naquela época do Estado Novo aos cangaceiros que se entregassem e mostrassem a disposição de abandonar a luta nos grotões do sertão nordestino. E quase todos seguiram esse ritual, e mesmo os que não se entregaram receberam também posteriormente o benefício. No caso do Criança, depois da anistia, ele se separou de Dulce e foi para Minas Gerais, antes de mudar-se para São Paulo, onde se casou outra vez e teve duas filhas. Dulce foi morar em Campinas.
Criança era vendedor de verduras no bairro do Sacomã. Ora, o Sacomã é um bairro muito grande. Fiquei seis meses procurando tudo quanto era verdureiro, e ao encontrar algum, tascava: “Você é Criança?”. Recebi inúmeros nãos. Alguns mais velhos me olhavam com desdém. Parecia um insulto.
Mas, de tanto procurar cheguei ao alvo. Vi um cara com pouco mais de um metro e meio de altura, magrinho, franzino e com uma carrocinha cheia de verdura. Alguém o chamou de Seo Vitor, e isso me fez acreditar que ele era o alvo. Mas desconfiei como aquela figura raquítica poderia ter sido um cangaceiro, matador de capangas dos coronéis? Por via das dúvidas, repeti a pergunta: “Você é o Criança?”
O senhorzinho fixou os olhos nos meus e disse: “Quem é o senhor para me chamar por esse nome?” A busca estava resolvida. Matamos a charada. Estava diante de um feroz ex-cangaceiro de Lampião. Mas a batalha não terminou aí. Por mais que eu o convencesse da sua importância histórica, ele se recusava terminantemente a falar sobre o assunto. E foi saindo. Aí, estrategicamente, fiz questão de dar a entender que me desinteressara pelo assunto. Despistei-me, mas acompanhei a sua trajetória até vê-lo entrar numa viela. Esperei até que ele saísse outra vez com sua carrocinha. Fiquei numa mercearia, à espreita, e lá obtive mais informações sobre ele. Todos o conheciam como vendedor de verduras, com o nome de Vitor, e não Antonio. Nunca ninguém ali desconfiara do seu passado de cangaceiro. Sabiam da existência do seo Vitor, um homem de bons modos, mas ninguém sabia do seu passado, pelo menos até aquele momento.
Depois que ele passou, eu fui à Vila e não foi difícil encontrar sua residência, uma casa simples, parede meiada com outra casa, todas elas interligadas fazendo um corredor de casas humildes. Bati a porta e duas adolescentes apareceram. Eu disse que queria conversar com elas algo muito importante. No primeiro momento, elas desconfiaram, ficaram preocupadas. Aí eu disse que era jornalista e que queria fazer uma reportagem sobre a vida dos que moravam num bairro pobre. Disse que a matéria iria ajudar a todos. Eram duas filhas que o Criança teve em São Paulo, ali mesmo no bairro do Sacomã. Aos poucos, elas foram se descontraindo e permitiram que eu entrasse na casa para conversarmos melhor.
Conversamos sobre o Nordeste, sobre a seca. Elas nem conheciam o Nordeste. Sua mãe também entrou na conversa. Depois de muito tempo, depois de eu dar o maior valor ao cangaço como fato histórico, mostrando as contradições das injustiças sociais nos sertões daquela região brasileira, eu disparei: “Vocês sabem que o Vitor foi um soldado a serviço dessa batalha?” Elas responderam: “Nunca soube que meu pai tinha sido soldado”. “Não, ele foi cangaceiro, lutou contra os coronéis que escravizavam os pobres e foi muito importante nessas batalhas”. As três me olharam estupefatas, surpresas, sem querer acreditar no que eu dizia.
“Então o Vitor foi cangaceiro de Lampião?”, perguntou a mulher. “Sim, e foi um dos melhores”. E eu estou aqui a mandado do grande apresentador da TV Tupi, o Airton Rodrigues. Ele quer que vocês participem juntamente com outros ex-cangaceiros do “Almoço com as Estrelas”. As três começaram a gostar da ideia. “Você está falando sério?”, perguntou uma delas. A cada minuto que se passava eram mais surpresas. Insisti: “O seu Vitor, ou Criança foi uma peça importante no tabuleiro da história do Brasil”. “Mas como o senhor soube disso?”, perguntaram. Eu informei que já conhecia outros ex-cangaceiros, amigos dele, que conviveram com ele no cangaço, e que queriam muito vê-lo. Aí eu comecei a citá-lo com o nome no cangaço para que elas começassem a se acostumar com a nova realidade.
O quadro aos poucos se modificou e eu combinei com elas que voltaria àquela casa na companhia de três ex-cangaceiros: Sila, Zé Sereno e Balão. Ia ser uma surpresa para o Criança. Combinamos tudo e no dia seguinte, às oito horas da manhã, estava lá. O Criança ficou desnorteado, quase desmaiou com a surpresa, mas os ex-cangaceiros logo o convenceram de que não existia nenhum risco, eles estavam anistiados do passado por um decreto de Getúlio Vargas e que todos eles eram peças da história brasileira! Repetia a mesma ladainha quando eles ameaçavam fugir da raia. Aos poucos o ambiente foi se descontraindo e à medida em que ampliávamos a importância do cangaço, foram assumindo a sua importância histórica, o que era uma verdade, embora dita como uma forma de persuadi-los. Mais tarde Criança nos disse que na noite do dia em que o encontramos ele não conseguiu dormir. Teve insônia, pesadelos e lembranças daqueles tempos.
Mas faltava uma figura muito importante para fazer parte daquele grupo que tínhamos reativado em São Paulo. Ela não tinha sido cangaceira, mas era nada mais e nada menos do que a filha de Lampião e Maria Bonita, de nome Expedita. A princípio pensava ser Expedita a única filha de Lampião, mas depois descobrimos que o casal de cangaceiros tinha tido um filho homem de nome João Ferreira da Silva, conhecido em Juazeiro do Norte onde morou até a sua morte no ano 2000. João nasceu em 1938, tendo sido deixado com 42 dias de vida na casa de dona Aurora da Conceição, em Juazeiro durante uma das passagens do bando na região do Cariri. Lampião furou a orelha da criança com um punhal com o objetivo de reconhecê-lo quando voltasse para pegá-lo. Dizem os historiadores que era intenção do cangaceiro fugir naquele ano para o Estado de Goiás e abandonar o cangaço. Nada disso aconteceu porque, como dissemos ele foi morto pela volante do tenente Bezerra em 28 de julho do mesmo ano. João Ferreira, ou João Peitudo, foi reconhecido filho de Lampião em 1994, através de um exame de DNA realizado nos Estados Unidos.
Não foi difícil chegar à filha Expedita, difícil foi convencê-la a participar do nosso programa. Ela era arisca e, mais do que isso, introvertida. Mas tinha uma filha que era o seu reverso. Atirada, afoita e cheia de vontades. Essa moça, que se chamava Vera Ferreira, entendeu rapidamente da importância que sua mãe e a convenceu de participar do programa. Mais do que isso, passou a ser uma das maiores defensoras da memória do seu avô, criando espaços e divulgando sua história com outro viés, numa época em que certos historiadores colocavam Lampião apenas como um bandido sanguinário. Vera inverteu esse quadro e passou a se aprofundar no assunto, mostrando a verdadeira face do Nordeste na época dos cangaceiros. As injustiças sociais foram ressaltadas por ela em textos, entrevistas mantendo vivo esse momento tão importante da história do Brasil, que foi o cangaço.
Em 1988, comemorando cinquenta anos da morte de Virgulino Ferreira, Vera criou o museu do cangaço, no Centro de Turismo de Sergipe. Funcionou quatro meses, mas depois foi destruído por uma forte chuva que caiu em Aracaju, destruindo fotos e documentos importantes da época do cangaço.
Vera não se entregou. Continua lutando para abrir novos espaços e para manter viva a história do seu avô. Ela escreveu também o livro De Virgulino a Lampião, em coautoria com Antônio Amaury, que também pesquisa esse movimento há muitos anos. Ela diz que o livro procurou mostrar a verdadeira face do cangaço. Vera introduziu definitivamente sua mãe, Expedita, nessa luta. Expedita, com oito anos de idade, foi morar na cidade de Propriá, com seu tio João Ferreira, irmão de Virgulino e o único que não seguiu o cangaço. Foi muito boa a chegada de Expedita, que participou de encontros, entrevistas e outros eventos, sempre falando de seu pai com muito orgulho.
Depois do Almoço com as Estrelas, apresentado por Airton e Lolita Rodrigues na TV Tupi, a vida de todos esses ex-cangaceiros mudou radicalmente. Começaram a ser requisitados pela imprensa. Participaram de outros programas, e Sila passou a costurar para celebridades, como Hebe Camargo, e estiveram presentes num almoço oferecido pela revista Realidade no restaurante Cabeça Chata, da rua Augusta, onde fiz uma matéria do encontro, depois de trinta anos, de Zé Sereno com Adriano, um ex-soldado da volante, que o procurava desde o fim do cangaço para “um acerto de contas”.
Trinta anos depois do cerco de Angicos, Alagoas, onde Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram mortos e decapitados, encontraram-se num restaurante de São Paulo cinco participantes do combate. Eram quatro ex-integrantes do bando do Rei do Cangaço e um antigo membro da “volante” tão temida quanto os cangaceiros. Depois da madrugada de 28 de julho de 1938, eles tomaram rumos diferentes. Deixaram o sertão e construíram uma existência sem aventura, tiveram filhos e tornaram-se cidadãos comuns. Todo aquele passado voltou, num relance dramático, quando o grupo começou a ser apresentado ao antigo “volante”. O ex-soldado Adriano pareceu receber um choque ao ouvir o nome de Zé Sereno, o ex-bandido que ele perseguiu todo esse tempo para vingar-se, e que era então um zelador de um colégio.”
Mas Zé Sereno, ao ver o ex-soldado da volante, exclamou: “O que passou, passou! Eu não guardo rancor”. Pudera! Que rancor? Adriano, por sua vez, cultivou por muito tempo um ódio pelo Zé Sereno, e jamais esqueceu a provação que o cangaceiro lhe impôs na cidade de Jeremoabo, na Bahia. Adriano trabalhava na fazenda do coronel João Dantas e viajava com uma boiada, quando um “coiteiro”, figura que naquela época homiziava os cangaceiros, pediu para o Adriano mudar o rumo de sua caminhada, “porque a estrada era ruim”. Adriano foi parar noutra fazenda e se viu cercado por cinco cangaceiros, que os chamaram de delator. Adriano foi amarrado a uma árvore sem as vestes e ali ficou até que alguém aparecesse para soltá-lo. Adriano tomou uma decisão: entrar para a volante para se vingar do Zé Sereno. E foi o que fez, mas acabou o cangaço e Adriano não conseguiu vingar-se.
Trinta anos depois desse fato, os dois se encontraram e, depois de muito susto e muito suspense, resolveram fazer as pazes, tomar cerveja juntos e se livrar da memória de um passado que não foi bom para os dois.
Nascia dessa forma meu ingresso para a pesquisa mais ampla sobre o cangaço.
Viajei por algum tempo pelas cidades nordestinas, fui a Angicos acompanhado de Sila e José Sereno, fizemos um vídeo que jamais foi ao ar porque a TV Tupi foi extinta e o arquivo sumiu. Nessas minhas caminhadas entrevistei ex-coiteiros e gente que conheceu Lampião, gente do povo e descendentes de coronéis e chefes políticos. O cangaço não pode ser analisado isoladamente. Foi um movimento, como muitos outros, que nasceu no Nordeste como resposta ao coronelismo, naquela situação de verdadeira escravatura que viviam as populações mais pobres. Se o governo não fazia nada para combater as desigualdades sociais, o cangaço, a seu modo, pretendeu fazer, tentando subjugar o poder civil, afrontando prefeitos e delegados, e a polícia, que passou a ser chamada de “bando de macacos” por aqueles que lutavam em nome de Lampião. Os cangaceiros que faziam justiça com as próprias mãos, eram admirados por muitos, nas cidades, vilas, povoados e fazendas, porque eles subjugavam os fazendeiros, os coronéis e a polícia, algozes diretos ou indiretos dos sertanejos injustiçados. Esse clima durou muitos anos, mais de meio século, e foi nesse clima que surgiram os movimentos rebeldes, vinculados a movimentos messiânicos. Eles se completavam na dor e no amor, na injustiça e na fé, e na vontade de mudar e de viver decentemente.
Lampião era amigo de Padre Cícero, mas a coluna Prestes jamais foi combatida pelos cangaceiros como queria o governo do presidente Arthur Bernardes, que convocou o senador Floro Bartolomeu para convencer Padre Cicero a trazer os cangaceiros para combater os revoltosos comandados pelo então capitão Luís Carlos Prestes. Prometeu o título de Capitão para Virgulino Ferreira e o de sargento do exército para Livino. Foi hilariante, para não dizer ridículo esse episódio. Padre Cícero convocou Lampião e muitos cangaceiros para marchar até Juazeiro do Norte, para receber das mãos do senador Floro Bartolomeu, em nome do governo Artur Bernardes, a patente de capitão. Mas Floro adoeceu e não pode ir à cerimônia. Ficou no Rio de Janeiro, onde morava.
Os cangaceiros, depois de percorrerem muitos quilômetros, muitas cidades, inclusive Mossoró, onde eles sofreram revezes, chegaram a Juazeiro do Norte. Padre Cícero não sabia o que dizer diante daquele transtorno, chamou Lampião e começou a se desculpar pela ausência do homem do governo.
“Mas meu padim Padre Ciço, o homem do governo está aqui em Juazeiro do Norte”, disse uma criança que estava próximo ao clérigo. “Eu sei onde ele está”. “Se sabe, vamos buscá, para arresolver logo esse problema”, respondeu Lampião, muito preocupado com a inquietação do Padre Cícero. Chamou três dos seus companheiros e ordenou.
O homem do governo estava sim na cidade. Na verdade, era um funcionário do ministério da Agricultura, Pedro de Albuquerque Uchôa, que passava férias na cidade. E ele foi “convocado” a entregar a patente aos dois cangaceiros. Padre Cícero se calou. Deixou o barco correr como queriam todos ali, mesmo. Era uma farsa, muitos perceberam, inclusive e principalmente o padre Cícero, mas fazer o quê se não havia outra saída? Os três cangaceiros foram buscar aquele funcionário federal para presidir a cerimônia.
“Naquele dia, eu assinaria a demissão do presidente Arthur Bernardes”, disse Uchôa. E lá foi ele preparar numa folha simples de papel, sem timbre, sem nada, o “documento” que dava a patente de Capitão para Virgulino Ferreira e a de sargento para seu irmão Livino. Lampião percebeu todo o engodo, mas também não queria magoar seu grande amigo Padre Cícero. Deixou o barco correr. Aceitou o título e disse que daquele dia em diante passaria a ser chamado de Capitão Virgulino Ferreira. Mas não demorou muito ali. Ele já estava chateado com as notícias publicadas pelos jornais de Pernambuco, que não aceitavam o ingresso “do famigerado bandido, nas gloriosas fileiras do Exército brasileiro”. Voltou para a catinga alagoana e jamais combateu a Coluna Prestes.
O marechal Cordeiro de Farias, que participou da Coluna Prestes, em 1967, em entrevista que fiz como ele para a TV Bandeirantes, informou que realmente em 1926 se encontrou em território cearense com o bando de Lampião. “Não trocamos um só tiro”. O cangaceiro ao saber que se tratava dos revoltosos, fez questão de dizer: “Essa luta não é nossa. Pode passar e seguir seu rumo. Nós estamos voltando para casa”.
Nem todos os movimentos que existiram nessa região do Brasil em função dos povos oprimidos tinham consciência do papel histórico que desempenhavam. Mas isso não diminui sua dimensão histórica, porque, no fundo, era uma recusa às estruturas do poder que dominavam pela força. É nesse ambiente que surgiram os movimentos quer de religiosos, quer de revoltados.
Canudos (1893-1897), Caldeirão no Ceará (1926 a 1936), Pau de Colher na Bahia (1934), Coluna Prestes (1926), todos responderam às injustiças sociais que ocorriam naquela região.
Os que representaram uma consciência mais aguda dessas questões foram Canudos e a Coluna Prestes.
Canudos, de Antônio Conselheiro, se identificou pelo agrupamento de homens, mulheres, jovens e crianças excluídos que esperavam de Deus ou dos homens aqui da terra a reparação dos seus danos, e os seus direitos mais fundamentais. Antônio Conselheiro e beato José Lourenço encampavam a vida comunitária para romper com a lógica social do sertão nordestino, essa estrutura fundamentada na concentração de riqueza, de classe dominante pequena, mas exercendo o poder sobre uma massa numerosa de miseráveis. Canudos foi a primeira grande resistência. A comunidade enfrentou quatro grandes expedições militares, mas no final não resistiu e 20 mil sertanejos foram mortos. Em 22 de setembro de 1887 também morria Antônio Conselheiro. Não se sabe a causa mortis, se foi por ferimentos causados por uma granada ou uma forte disenteria. O beato José Lourenço escapou da morte e, aos 20 anos de idade, mudou-se para Juazeiro. Alinhou-se depois, em 1925, à Coluna Prestes para mobilizar os setores sociais mais marginalizados contra o poder das oligarquias.
Todos os movimentos e rebeliões ocorridos entre 1880 e 1938 tinham um ponto comum: reação a uma estrutura fundiária injusta. Por esta razão é que há uma fusão muito forte entre lideranças nesse período e nessa região nordestina. E tudo se firma em torno de uma figura carismática, ora Padre Cicero, ora Antônio Conselheiro, ora Antônio Silvino, ora Lampião, e, num outro patamar, a Coluna Prestes. O inimigo era o mesmo para todas essas situações. Caldeirão e Pau-de-Colher foram movimentos com as mesmas características, mas não alcançaram a importância política e territorial de Canudos.
A Coluna Prestes foi talvez o mais importante desses movimentos. Liderada por militares contrários ao governo da República Velha e às elites agrárias, ocorreu entre os anos de 1925 e 1927. Teve esse nome porque o principal líder do movimento foi o capitão Luís Carlos Prestes. Teve outras grandes figuras a acompanhá-lo, como o então tenente Cordeiro de Farias e o policial militar Miguel Costa, que se rebelaram contra a falta de democracia, fraudes eleitorais e concentração do poder político nas mãos da elite agrária, que explorava as camadas mais pobres.
Composta inicialmente por 200 homens, chegou a ter a 1.400 integrantes, entre militares e simpatizantes do movimento que se juntavam a eles. Percorreram 25 mil quilômetros pelo interior do Brasil. A coluna Prestes começou em Alegrete, no Rio Grande do Sul, e dois anos depois terminou dividida, sem conseguir derrubar o governo de Arthur Bernardes. Um grupo foi para a Bolívia e outro para o Paraguai. Embora não tenha conseguido alcançar seu maior intento, foi um movimento que enfraqueceu a República Velha, abrindo caminho para a revolução de 1930, que levou Getúlio ao poder.
Mas, voltemos ao cangaço, o movimento que mais se aproximou do povo e que sobreviveu porque em muitas situações contou com o apoio do povo, através de coiteiros ou seguidores. Três grandes cangaceiros fizeram parte desse cenário nordestino, nesse período. Os três tiveram a mesma motivação, ou seja, o desejo de vingar a morte de pais ou parentes próximos. Desses três, apenas um, Sinhô Pereira, conseguiu vingar a morte do seu pai. Os outros dois abraçaram a ideia de vingança, mas seus objetivos foram mais amplos. Mostraram-se rebeldes contra aqueles que mataram muitos pais, aqueles que escravizavam seus empregados, aqueles que praticavam impunemente o crime e que recebiam a proteção do Estado. Antônio Silvino, ou “Rifle de Ouro”, foi o primeiro deles, mas Lampião foi o mais emblemático. Foi o Robin Hood dos sertões nordestinos durante dezoito anos. Foi o mais temido e o mais respeitado, o mais querido e o mais odiado.
O cangaço deve ser contado, em seus mais de meio século, a partir de Antônio Silvino, cujo nome verdadeiro era Manoel Batista de Moraes, durante 16 anos driblou a polícia, saqueou comércio, recebeu dinheiro através de ameaças e morreu, em 1944, pobre, na cidade de Campina Grande, Estado da Paraíba. Antonio Silvino foi capturado em 27 de novembro de 1914 pela polícia de Pernambuco sob o comando de Teófanes Ferraz Torres, em Lagoa do Laje. Foi ferido e enviado para Recife, onde foi julgado e condenado a 39 anos e quatro meses de prisão. Cumpriu 23 anos e foi beneficiado por um indulto assinado por Getúlio Vargas. Nascido em Afogados da Ingazeira, uma pequena cidade situada às margens do Rio Pajeú, no Estado de Pernambuco, em 1875.
Seu pai, Batistão do Pajeú, não chegou a ser cangaceiro, era um homem provocador, bandoleiro e autor de vários homicídios. Um dia ele resolveu desafiar seus desafetos, indo passear acintosamente na feira de Ingazeira. O chefe político local, o coronel Luís Antônio Chaves Campos, contratou um matador para dar fim a sua vida. O matador Desidério Ramos liquidou o Batistão com um tiro de bacamarte. Esse foi o motivo mais forte que levou Antônio Silvino a se tornar um dos cangaceiros mais temidos naquela região.
Silvino teve trajetória e ações parecidas como a do seu sucessor Lampião. Saqueava fazendas e armazéns e entregava aos pobres, fazia reféns e pedia dinheiro. Entrou para o cangaço aos 21 anos de idade.
Nunca conseguiu vingar seu pai, mas cobrou da sociedade, as atrocidades que a polícia praticava, como ele próprio dizia. Do seu grupo faziam parte Luís Mansidão e seu irmão Isidoro, Chico Lima, João Duda, Antônio Pinta e, posteriormente, seus sobrinhos Zeferino e Batistinha, Jesuíno Brilhante, Adolfo Meia Noite, Moita Brava, Cavalo de Cão, Relâmpago, Nevoeiro, Bacurau, Cobra Verde, Azulão. Muitos historiadores dizem que Antônio Silvino não era um grande espantalho, às vezes era até piedoso com suas vítimas, outros o colocam na lista de bandido sanguinário. Ele dizia que roubava para sobreviver, “porque a polícia não o deixava ter uma vida decente. Era obrigado a pegar comida, dinheiro e roupa, e pegava as armas dos coronéis para que eles não maltratassem os empregados que eram seus escravos.” O jornalista e escritor Mauro Mota relata: “Ao invadir uma cidade na Paraíba, o famoso cangaceiro se dirigiu a casa de um delator e disse, em público, que ia matá-lo. A esposa da vítima, desesperada, pediu-lhe: “Moço, não mate meu marido. Tenha pena de uma pobre mulher e de crianças que vão ficar órfãs”. Ao que o cangaceiro lhe respondeu: “Antônio Silvino não sabe negar nada a uma mulher aflita. Perdoo a vida, mas para não ficar sem castigo, vou mandar dar-lhe uma pisa.” Ao que a mulher voltou a lhe solicitar: “Capitão, se é para humilhar meu marido, o senhor me desculpe: em um homem não se bate! Mande logo matá-lo, que é melhor!” Naquele momento, vendo esvair-se a oportunidade de escapar da morte, o marido delator interrompeu o diálogo dos dois e exclamou: “Não se meta mulher, que o chefe sabe o que faz!” E o chefe não fez nada. Perdoou o homem e deixou-o escapar vivo. “Muher num tem mesmo qui dar palpite quando dois home fala”, disse Silvino.
Um outro episódio foi narrado pelo escritor e sertanejo Ulisses Lins. Certa vez, Antônio Silvino passou pela Fazenda Pantaleão, uma propriedade de Albuquerque Né, o avô de Etelvino Lins. Como o cangaceiro não o conhecia, apenas cumprimentou-o à distância, tirando o seu chapéu. Quando foi informado de quem se tratava, no entanto, Antônio Silvino voltou para pedir-lhe desculpas, humildemente, por ter passado em suas terras armado, justificando isto pela vida de riscos que levava, fugindo sempre dos inimigos e da polícia. Dessa forma, mesmo considerando o crime como uma banalidade, o cangaceiro respeitava a autoridade e a lei dos coronéis-fazendeiros, em verdade, os mais poderosos de todos.
Ele chegou a ser chamado de “bandido cavalheiro”. Mesmo não perdoando os inimigos, adquiriu fama por proteger as pessoas simples e humildes: as mulheres, as crianças, os doentes e os idosos. Um poeta popular sertanejo, na época, sobre ele escreveu:
Antônio Silvino é
Cangaceiro do sertão,
Mas não ataca a pobreza
Antes lhe dá proteção;
Mas tem orgulho em matar
Oficial de galão.
O expoente máximo do cangaço, Virgulino Ferreira, o famoso e temido Lampião, também entrou nessa vida pelos mesmos motivos dos outros dois: o assassinato de seu pai José Ferreira por um capanga do coronel José Saturnino, de nome Benedito Caiçara, a 29 de junho de 1920, e a morte de sua mãe Maria Soledade, vitimada por um colapso cardíaco, 18 dias antes da morte do marido, a 21 de maio de 1920. José Ferreira vivia tranquilamente com seus oito filhos na Fazenda Ingazeira, em Vila Bela, estado de Pernambuco. Era vizinho do poderoso coronel, membro da família Nogueira. Eles nunca gostaram daquela vizinhança incômoda de José Ferreira. Por arengas sem importância, um dia resolveu expulsar os Ferreiras do lugar. Dizem que tudo começou com uma brincadeira que fizeram os filhos de José Ferreira, que um dia resolveram cortar os rabos dos animais da fazenda.
Os Ferreiras foram ameaçados de morte. José Ferreira, vendo o risco que passava a família, mudou-se para a fazenda Poço Negro em Floresta, que ficava a quatro léguas, e daí para a fazenda Olho D’água e depois para a fazenda Engenho, já no Estado de Alagoas. Mas a perseguição continuou. A família não teve mais sossego. “Era só desgraceira, como dizia o velho patriarca. Em meio às fugas, para completar o infortúnio, morreu sua mulher Maria Soledade, no Engenho Velho. E os filhos acompanhando de perto todo o sofrimento da família. No início de agosto de 1920, José Ferreira é fuzilado pela volante do sargento Lucena enquanto debulhava milho. Foi o estopim que definitivamente levou Virgulino e seus dois irmãos Antônio e Livino a entrarem no cangaço como forma de revolta diante da situação em que foram envolvidos. Dos quatro filhos, apenas um, o João, não entrou no cangaço.
Revoltados, Virgulino e seus dois irmãos incendiaram a estação ferroviária e daí para frente não teve mais o caminho de volta. Atacaram fazendas, e quando sabiam da existência de um coronel, Lampião não tinha condescendência. Queimava fazenda e matava o gado. Foi o período do ódio, o período mais perverso do cangaceiro que começou combatendo ao lado de uma outra figura famosa do cangaço, Sinhô Pereira. Antonio Silvino entrou em cena depois que as brigas entre as famílias Carvalho e Pereira tiveram como resultado a morte do Seu Né (Manoel), irmão do Sinhô Pereira. Em seguida, mataram impunemente seu tio, Padre Pereira. Foi a gota d’água. O bando formado agiu durante seis anos, de 1917 a 1922, até conseguir matar Luís de França e outros membros da família Carvalho. Aí, Sinhô Pereira resolveu parar e fugir para o Estado de Goiás, passando o bastão para Virgulino, que tinha razões de sobra para se tornar um revoltado. Junto com Sinhô Pereira, ele chegou a participar de duas ou três batalhas. Numa delas, na fazenda Quixabá, num combate à noite, Virgulino ganhou o nome de Lampião, porque o cangaceiro Dé Araújo ficou impressionado com a atuação do novato que acabara de chegar: “A boca do rifle de Virgulino mais parecia um lampião”.
Sinhô Pereira era de Serra Talhada e em agosto de 1920 passou o bastão para Virgulino, que a partir de então passou a ser chamado de Lampião. A fama de Lampião cresceu rápido. Muito inteligente e carismático, cheio de estratégias guerreiras, ele não somente formou seu grupo com oito ou nove cangaceiros, como incentivou a criação de vários outros grupos que lutavam sempre em nome do cangaceiro maior. Essa estratégia do Rei do Cangaço confundia as tropas policiais que perseguiam.
Labareda certo dia me contou que os chefes desses bandos se identificavam sempre como Bando de Lampião, o que o tornava um ser acima do normal. Lampião aparecia no mesmo dia em Alagoas, ou em Pernambuco, Sergipe ou Bahia. Existia um outro dado que me foi informado por José Sereno: “No cangaço nós não tinha nome certo. Se o cangaceiro morria, seu nome era dado ao próximo que entrasse nessa vida”. A polícia informava a morte de Pitombeira, por exemplo, e daqui a pouco o Pitombeira aparecida em outro lugar. Lampião fazia questão de demonstrar sua generosidade com os pobres, e tinha deles o afeto. Se ele saqueava um armazém, ía distribuir a comida com a população e entregava também roupas e utensílios domésticos. Perfumes e joias ficavam com os cangaceiros, que gostavam das duas coisas.