Nova obra do jornalista que virou ficcionista, “A Nova Ordem” é uma caricatura do Brasil sequestrado pelo agronegócio, pelos militares e por uma fatia da sociedade para quem projeto nacional e povo são desnecessários.
Por Paulo Donizetti de Souza, da RBA
São Paulo – Para quem ainda não compreendeu o que está acontecendo com o Brasil, o novo livro de ficção de Bernardo Kucinski desenha. Narrada em dois tempos – o ambiente de um país dominado pela canalhice e as explicações dessa canalhice em notas de rodapé –, a novela A Nova Ordem (Editora Alameda, 180 páginas) é mais do que um enredo baseado em fatos reais, como os outros cinco lançados pelo ex-jornalista (se é que é possível deixar de sê-lo) e professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
É uma caricatura daquilo que a hipocrisia nacional – da imprensa, das instituições da República e daquela parcela da população que punha a camisa da CBF e batia panelas – transformou em governo Jair Bolsonaro.
B. Kucinski, assinatura adotada pelo jovem ficcionista de 82 anos, não achou difícil escrever A Nova Ordem. Trabalhoso foi garimpar o volumoso aparato de proteção social, ambiental, trabalhista e econômica que projetou o Brasil que viria depois da Constituição de 1988. E organizá-los nos “editos” desmanteladores que conduzem a Nova Ordem.
Os“editos” têm na novela função semelhante à dos Atos Institucionais dos governos da ditadura civil-militar (1964-1985): desmontar as leis constituídas sob a vigência democrática e legalizar a barbárie decretada pelos ditadores. Assim o Brasil de bem-estar social desenhado pela Constituição de 1988 dá lugar a uma república sem projeto de nação, movido a uma agroindústria que não mais precisa da mão de obra dos trabalhadores para tocar a economia e tampouco precisa de povo. Exceto um povo desinformado, cego, submisso e servil.
“Me diverti escrevendo. É uma história engraçada. Trágica, mas engraçada. Mas trágica”, definiu Kucinski, durante o debate de lançamento de A Nova Ordem, no auditório do Centro Universitário Maria Antônia, da USP, no último dia 18. Ele admite ter adicionado à sua pesquisa alguns textos, contos e crônicas anteriores, para compor o enredo da novela. E confessa perplexidade ao deparar, em sua pesquisa, com o potencial do Estado brasileiro pós-Constituição de conduzir o país para um avanço civilizatório. “É a sexta obra de ficção. Alguns textos foram aproveitados. É como uma sinfonia, em que trechos vão sendo compostos e depois se encaixam numa sequência lógica”, conta o autor.
O jornalista Enio Squeff, crítico de arte, pesquisador, ilustrador e autor de todas as capas de livros de Kucinski, exemplifica: “A Sinfonia nº 9 de Beethoven foi apresentada em 1824, mas começou a ser composta, em partes, seis anos antes”.
“Não foi trabalhoso”, observa o autor. “Os decretos destrutivos do Estado brasileiro eram previsíveis. Estão na lógica do governo Bolsonaro. E começaram antes, com o governo de Michel Temer, responsável pela ‘reforma trabalhista e pela emenda à Constituição que instituiu o congelamento de gastos públicos por até 20 anos.”
Para ele, desde o golpe que depôs Dilma Rousseff em 2016 ficou evidente a chegada ao poder de uma “lógica de desmantelamento” do Estado brasileiro.
O “Edito 2/2019”, por exemplo, cria a Econec – Economia Neoliberal Coercitiva – e determina: a extinção do BNDES e dos ministérios do Planejamento, de Minas e Energia e da Indústria e Comércio. Privatiza empresas estatais, autarquias e bancos; leiloa reservas minerais e petrolíferas; zera alíquotas de importação; extingue a Zona Franca de Manaus, a Sudam e a Sudene; reduz a 10% o Imposto de Renda e elimina a isenção aos detentores de renda baixa; extingue o Instituto Nacional do Seguro (INSS), estabelece a idade mínima de 80 anos para aposentadoria e substitui o regime único por contas individuais de capitalização; extingue a estabilidade do servidor público, o Bolsa Família, os benefícios sociais ao idoso pobre e ao deficiente físico, o auxílio-doença e o seguro-defeso; extingue também o Sistema S (Senai, Senac, Sebrae e Sesc), o IBGE e as agências reguladoras.