A obra marca um percurso de diálogos historiográficos estabelecidos no grupo de pesquisa Escravidão e Mestiçagens: memórias, comércios, conexões e trânsitos culturais no Novo Mundo
Memórias da escravidão em mundos ibero-americanos (Séculos XVI-XXI) contribui com novas questões conceituais, interpretativas que estimulem outras reflexões.
Confira abaixo a introdução do livro:
Desde os anos 2000, integrantes do grupo de pesquisa Escravidão e Mestiçagens: memórias, comércios, conexões e trânsitos culturais no Novo Mundo, composto por historiadores da escravidão e das mestiçagens oriundos de universidades brasileiras, perscruta, em perspectiva comparada, aspectos relativos à construção de memórias e mestiçagens biológicas e culturais em sociedades moldadas pela escravidão. A empreitada tem sido um grande desafio, mas ao mesmo tempo tem resultado em sólidas pesquisas frutos de intercâmbios acadêmicos. Entre trocas de ideias e acalorados diálogos, o grupo deparou-se com integrantes do grupo de pesquisa Antigo Regime nos Trópicos, focado, entre outros aspectos, na compreensão de hierarquias sociais escravistas acopladas a estruturas de antigo regime em áreas de conquista. Foi a partir de constantes diálogos – que recentemente contam com o grande incentivo do mestrado interesinstitucional entre o Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade e o Instituto Federal do Maranhão e com esforços do Laboratório de Estudos da Escravidão e das Mestiçagens da Universidade Estadual da Bahia (Campus Vitória da Conquista) – que a ideia do livro ganhou corpo. Trata-se de refletir sobre a construção de memórias da escravidão em sociedades escravistas, e não apenas no pós-abolição, mas o não apenas não implica em fechar portas à abordagem de nosso tempo, posto que, quando se lança luz sobre memórias, há continuidades, reelaborações e enfoques variados.
Nesse sentido, os desafios atestam a pertinência e a importância do fomento ao debate em torno das acepções sobre escravidão, sobretudo em tempos de reordenação do mundo do trabalho. De certo modo, as memórias estão presas em cada tempo em que são edificadas, mas nem por isso as forjadas na época da escravidão e na República precisam deixar de dialogar. Daí, optamos por compor o livro com obras que versem sobre diferentes contextos de produção de memória, cujos construtores no período escravista foram também diversos: elites na América hispânica colonial, grupos indígenas, pretas forras, pardos etc. Visamos, desse modo, realçar diferentes perspectivas sobre memória e, decerto, sobre sua outra face, o esquecimento. Ontem, como hoje, quem, quando, como, o quê e por que se lembra e se esquece?
A partir destas perguntas-chave, o livro abrange trabalhos que primam pelo rigor metodológico e conceitual, calcam-se em forte base empírica e abordam problemas de épocas e lugares distintos. Nessa seara, esperamos que o livro possa contribuir com novas questões conceituais, interpretativas e que estimule outras reflexões. De antemão, salientamos que as dinâmicas da construção de memórias não são estáticas, mas criadas por historiadores, outros cientistas sociais e por agentes sociais múltiplos em diferentes contextos. Tais dinâmicas foram e são influenciadas pelo presente de ontem e pelo presente de hoje.
Estamos cientes de que a compreensão dos processos históricos de constituição de memórias também é feita de modo indireto, indiciário e conjectural, e o mesmo se dá com a identificação dos lugares e materiais de memória. Almejamos, portanto, atentar às transformações dos significados, das palavras, dos sentidos e sentimentos sobre memória porque as sociedades ibero-americanos são entendidas como espaços constantes de vivências e de re(elaboração) de lembranças e esquecimentos da escravidão a partir de experiências resultantes de encontros afetivos e conflitivos entre povos europeus, americanos e africanos, e de seus descendentes mestiços, de senhores, de escravos, de libertos, de índios, de trabalhadores sem eira nem beira etc. Foram tais encontros sempre realimentados que moldaram as memórias.
Todavia, tudo o que dá forma ao livro só foi possível a partir das contribuições de integrantes de uma rede de pesquisadores e de autores convidados que primam pelo rigor em suas abordagens. Como o eixo do livro é temático, ele mantém diferentes perspectivas teóricas e metodológicas. No capítulo 1, Isnara Pereira Ivo e Herliton Nunes salientam como indivíduos e grupos sociais de origem africana consolidaram memórias de cultos e celebrações africanas no Brasil, ao mesmo tempo em que os autores demonstram que o Tambor de Mina, no Maranhão, foi tão intenso quanto santidades seiscentistas, calundus e candomblés. Prática religiosa de africanos Mina originários do reino de Daomé, o Tambor de Mina entrelaçava elementos culturais múltiplos. Em seguida, Ana Pereira contempla os esforços de associação, forjada pelo padre seiscentista Antônio Vieira, entre o cativeiro negro no Brasil e a resignação cristã. Textos bíblicos e ideias aristotélicas manifestos em sermões voltados a senhores e escravos engendravam uma memória plurissecular que articulava resignação, devoção e escravidão. No século seguinte, temas pontuados pelo jesuíta foram retomados por cronistas. No fim das contas, o padre Vieira, cronistas setecentistas e os que cultuavam o Tambor de Mina do Maranhão elegeram as religiosidades como parâmetros para edificar memórias.
No campo da história social, mas sem desprezar aspectos religiosos, Roberto Guedes alude, no capítulo 3, à tendência de forros e seus descendentes em forjar o esquecimento do passado escravo correlata à tendência de elaborar uma memória de liberdade, para o que a moral católica, os padres e os livros paroquiais de batismo exerciam papel fundamental no Rio de Janeiro setecentista. Forros senhores, seus descendentes e padres memoravam egressos do cativeiro como se fossem brancos. Nos enterramentos de Campos dos Goytacazes entre meados do século XVIII e princípios do XIX dava-se o mesmo, pois os pardos diferenciavam-se de cativos e outros oriundos do cativeiro com o fito de marcar suas dessemelhanças. A elaboração da memória almejava distinguir e hierarquizar, como salienta perspicazmente Márcio Soares no capítulo 4. Não só pardos esqueciam seu passado. Homens e mulheres africanos de Minas Gerais setecentistas silenciavam propositalmente sobre seus pretéritos africano e gentílico. Nas entrelinhas de seus testamentos conhece-se algo sobre suas vidas em cativeiro, mas muito mais sobre o engendrar de uma memória de vida em liberdade, de ser senhor e bom cristão, como bem perscruta Eduardo Paiva no capítulo 5. A hierarquia da escravidão, portanto, com base na moral católica, interferiu na construção de memórias senhoriais de forros e de seus descendentes.
Memórias antigas, anteriores às dos cronistas coloniais, às dos senhores forros e às dos contemporâneos conceitos de memórias individual e coletiva, foram preparadas por indígenas maias, astecas etc., que labutaram por construí-las, ainda que nem sempre ao modo e nem tampouco escritas em língua ocidental, mas em diálogo com eles a partir da conquista. As memórias eram sentidas e vividas, mas, ontem e hoje, elites e gentes comuns, sobretudo indígenas mais idosos, não necessariamente partilhavam as mesmas escolhas de recordações e esquecimentos, como etnograficamente nos ensina Carmen Bernand no capítulo 6. Antiga, mas também renovada no limiar da época moderna, a escravidão ibérica logo tratou de registrar a “color” dos escravos da Índia asiática e da Índia do Brasil que eram vendidos em Sevilha e em outras partes de Espanha quinhentista, mas a rarefação demográfica e a altíssima mortalidade, sobretudo dos índios do Brasil, talvez tenha levado ao esquecimento de sua presença no mundo ibérico europeu, como se nota na ótima abordagem de Rafael García e Manuel Chaves no capítulo 7. Novamente, a memória que ainda se constrói em nosso tempo, relativa ao império do Brasil oitocentista, prima e (nem) se esforça por tentar esquecer, como o século XX o fez, a escravidão e outras formas de trabalho forçado de povos indígenas. O apagamento das memórias históricas sobre indígenas ainda reitera a argumentação da necessidade de incorporá-los à cristandade, à civilização e à sociedade… nem que seja à força, como brilhantemente Patrícia Sampaio e Márcio Henrique não nos deixam esquecer.
Memórias da escravidão em mundos ibero-americanos (Séculos XVI-XXI), analisadas no presente do passado escravista e no nosso mundo presente, demonstram a persistência das escolhas de silêncios ou de lembranças sobre a secular desigualdade social.
Vitória da Conquista / Rio de Janeiro, fevereiro de 2019.
Isnara Pereira Ivo
Roberto Guedes