Para Haroldo Ceravolo, '2017 ficará marcado como o ano em que uma só editora pôs sete dos 10 finalistas na categoria romance', mas segundo o articulista, isso não precisa ser assim
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Em 2017, um número saltou aos olhos no anúncio dos nomes que concorriam ao Prêmio Jabuti: sete dos 10 livros finalistas na categoria Romance eram de apenas uma editora. Nos anos 2000, até onde consegui levantar os dados, nunca houve tal concentração. Nos resultados finais, editora ficou com dois das três premiações na categoria Romance e reuniu um total de 11 prêmios (em 87), o que parece até razoável, mas é porque a gente esquece que em muitas das categorias ela não publica ou não tem produção relevante na área.
É importante lembrar que a categoria Romance é uma das mais relevantes do prêmio, talvez aquela em que o resultado tenha maior influência no resultado comercial das obras. Aquela em que o resultado mais orienta o público geral. Aquela que mais consagra os escritores.
Não tenho nada a dizer sobre os finalistas. Não li nenhum dos dez livros, mas já li quase todos os autores e acompanho a carreira deles. Nada me faz supor que houve pressão, manipulação ou má fé dos jurados, muito menos da curadoria. Nada mesmo. Meu ponto é outro. A questão é estrutural.
O Jabuti é um prêmio do mercado, organizado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL). Formalmente, a CBL é uma defensora da bibliodiversidade do mercado editorial, tenho usado a palavra em diversos discursos e projetos que contaram com apoio governamental (como a participação na Feira de Frankfurt de 2013). A CBL também assina em conjunto com outras entidades um manual de boas práticas do mercado livreiro cujo primeiro item prevê “incentivar a bibliodiversidade com estímulo à presença e exposição de livros de editoras independentes e acadêmicas nas livrarias e nos canais de divulgação do setor”.
O que é bibliodiversidade? Vou usar um conceito que está na Wikipedia, de fácil consulta, portanto: “Em eco ao conceito de ‘biodiversidade’, ‘bibliodiversidade’ se refere à necessária diversidade das publicações a serem disponibilizadas aos leitores em determinado contexto. Françoise Benhamou, especialista francesa em economia da cultura, deu a seguinte explicação em seu discurso nas Assises Internationales de l’Édition Indépendante (Assembleia Internacional da Edição Independente): ‘Na biodiversidade, a variedade diz respeito muito simplesmente ao número de espécies; no mundo do livro, isto corresponderia ao número de títulos. No entanto, é claramente insatisfatório deixarmos as coisas assim. Voltarei a este ponto mais tarde. O segundo fator, enfatizado pelo conceito de biodiversidade, é o equilíbrio, o equilíbrio entre as espécies. Se olharmos o que isto significa na biodiversidade, vemos a ideia simplíssima de que se temos várias espécies, mas algumas estão presentes em maior número enquanto outras são raríssimas, as que são numerosas são suscetíveis de comer ou prevalecer em relação às outras. Isto é o que está acontecendo no mundo do livro onde é preocupante que a dominação dos blockbusters nas estantes dos supermercados e sobretudo em exibição nas livrarias esteja botando pra fora outras ofertas que são mais difíceis de promover’”.
Uma outra definição do termo, adotada pela Associação Internacional dos Editores Independentes, afirma que bibliodiversidade “é um complexo e autossustentável sistema de contar histórias, escrever, publicar e de outras formas de produção da oratura e da literatura. Os escritores e produtores do livro são comparáveis aos habitantes de um ecossistema. Bibliodiversidade é um fator que contribui para uma vida cultural próspera e para um ecossistema social saudável”.
O Jabuti, como prêmio promovido pela CBL, não conta, no entanto, com nenhum critério que favoreça a bibliodiversidade na disputa. Se ela aparece em algumas categorias, isso se deve ao esforço hercúleo feito pelos editores independentes, que têm de enfrentar falta de recursos para entrar na disputa e a força do marketing das editoras maiores. Sim, porque disputar o Jabuti é caro (a inscrição é paga e muitos exemplares tem de ser enviados aos jurados, o que implica também em custos de transporte) e incerto: como os livros das editoras independentes não são conhecidos, dependendo da categoria, a pressão do enorme número de inscritos das grandes editoras acaba “soterrando” livros de grande qualidade. É o que os usuários do Twitter conhecem como “flodar a timeline”: com o enorme afluxo de títulos da editora grande, os livros das editoras menores, por melhores que sejam, parecem não existir.
Falo como alguém que fundou a editora Alameda em 2004 e ganhou o prêmio de melhor livro do ano de não-ficção em 2015, com o livro-reportagem A Casa da Vovó – Uma biografia do DOI-Codi (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar. Mas, ao contrário das grandes editoras, sinto-me obrigado a adotar critérios ultralimitadores na hora de me inscrever: em geral, os custos para nós não compensam os eventuais benefícios. Sem meias palavras, participar regularmente de premiações como o Jabuti é um luxo que não podemos pagar. Se fosse só a Alameda, ok. Mas tenho certeza de que expresso uma questão que não se limita ao meu caso. Trata-se, assim, de um prejuízo cultural para o mercado, para o prêmio, para os autores e, em última instância, para os leitores.
Uma das regras mais injustas do Jabuti é o preço da inscrição por obra, que varia de R$ 285 (filiados à Câmara Brasileira do Livro) a R$ 430 (editores sem filiação a nenhuma entidade do livro). Fora esse custo, há o investimento dos cinco exemplares destinados aos jurados e o frete de enviá-los. Não apenas isso, ele pode ficar menor para as grandes: pelas regras do Jabuti, que faz mais de 31 inscrições ganha 10% de desconto em cada inscrição; quem faz mais de 61, ganha 15%; finalmente, quem faz mais de 100 (!) ganha 20% de desconto. Há, portanto, um “viés de entrada” para os títulos das grandes e uma barreira que limita a equidade para as pequenas.
Essa é uma regra perversa: ela premia a pratica da “flodagem” editorial. Em vez de incentivar a bibliodiversidade, ela a reprime. Ela estimula a concentração do prêmio. E a concentração do prêmio tem consequências no debate de ideias e formas na sociedade, uma vez que apenas as editoras com forte poder econômico podem inscrever tantas obras e acabam referendadas pelo prêmio, que de fato é o mais tradicional do país.
Admiro a trajetória do Jabuti em seus quase 60 anos. Mas passou da hora de adotar critérios que incentivem a bibliodiversidade no prêmio.
Regras do gênero foram adotadas nos anos 2000 pelos ministérios da Educação e da Cultura. Entre 2003 e 2010, sobretudo, essas mudanças, entre outras, foram responsáveis pela ampliação da diversidade editorial tanto na compra de livros didáticos pelo MEC (o que significou maior presença de editoras médias, maior concorrência nas disputas pelos editais de livros didáticos e melhoria significativa na qualidade do material distribuído nas escolas públicas de todo o país) quanto de obras gerais pelo MinC (o que significou maior presença de editoras pequenas, ampliação no número de títulos inscritos, maior diversidade cultural, racial e de gênero nas bibliotecas públicas).
Uma regra simples, adotada em programas de aquisição pelo governo federal, por exemplo, e que o Jabuti poderia incorporar, seria limitar o número de inscritos por editora em cada categoria. Uma outra opção seria o de limitar o número de finalistas de uma editora. E que tal cobrar mais caro, em vez de cobrar mais barato, para quem quer “flodar” o prêmio? Ou seja, em vez de ficar mais barato, por não cobrar mais caro de quem faz muitas inscrições, permitindo, assim, reduzir o custo de quem só pode fazer algumas? Com maior chance de competir, o número de títulos participantes tende a subir, e não cair: é como reduzir a velocidade da marginal para evitar acidentes, algo que já sabemos que funciona e reduz danos e mortes e, como efeito colateral, melhora o trânsito, ou seja, mais gente circula por ela.
No caso do governo federal, volto a dizer, a limitação do número de inscritos por editora fez aumentar o número de obras totais nas disputas, porque os editores menores, com razão, perceberam que tinham chances reais de serem selecionados. O mesmo pode ocorrer com o Jabuti, se a CBL levar mais a sério o seu compromisso assumido com a bibliodiversidade e passar a incluir a questão como um valor do principal prêmio literário do país.
*Haroldo Ceravolo é jornalista e editor da Alameda Editorial. Possui doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo e foi presidente da Liga Brasileira de Editoras (LIBRE) de 2011 a 2015.